Grande-pequena existência

É necessário muita força pra suportar o laço entre a vida e seu antônimo.

É preciso muita sutileza, uma extrema delicadeza para portar esse fino fio sem rompê-lo.
Minha mãe sempre me privou desse tipo de sentimento; esse tipo de coisa que os pais fazem mesmo.
Acho que até os meus 17 anos de idade nunca tinha ido a um enterro.
Os pais sempre acham que a tristeza na vida de filhos que os tem como pais deve ser coisa inexistente. Ou então, necessária apenas em casos de privações com finalidades morais proporcionadas por eles próprios.
A primeira vez que vi uma pessoa morta foi em uma excursão do colégio ao departamento de anatomia da UFPE.
Tomei um susto, meu coração acelerou.
Acelerei o passo para sair mais depressa da sala cheirando à formol.
Lembrei de um filme de terror que vi uma vez.
Quando cheguei em casa não almocei carne.
Depois desse episódio vi que minha mãe estava certa quando dizia que eu não deveria ser médica e correta também a respeito da morte.
Fugi desse tipo de imprevisto por anos. Sempre fechei os olhos ao perceber a presença de pessoas à beira da morte nos leitos do HR assim como faço em filmes de terror.
Só podia me questionar como minha mãe agüentava seu trabalho dentro de hospitais, locais de idas e vindas inconstantes.
Por ironia do destino, fiz uma escolha que me aproximou ainda mais da minha mãe e que aos poucos me faz compreendê-la.
Nessa dança da vida, só posso sorrir para minhas escolhas inconvenientes que vão de encontro a todas as evidências jogadas durante os anos.
Ao escolher trabalhar reforçando a costura dessa fita fina que separa a existência da saudade, fico cada vez mais confusa em relação a interferência da partida inevitável na vida dos remanescentes.
Encontrei minha mãe chorando enquanto arrumava a cama para minha irmã dormir.
Um anjo em forma de criança, que morava no hospital por engano bobo de Deus, tinha juntado tanto amor de todos em volta que no dia que reencontrou suas asas voou longe. Foi para um lugar no qual pudesse distribuir todo esse amor e ser muito amada de volta.
Aliás, amar aquela pequena não era nada difícil.
Até o maior coração de pedra racha quando se encontra alguém que ama existir, mesmo sendo essa uma existência breve na qual os olhos não muitas vezes ultrapassaram paredes brancas.
Ela, minha mãe e muita gente dentro daquele hospital, gente que muitas vezes não acreditava na própria vida mas que amava a da pequena, seguraram com força a fina fita que existia.
Deram ponto cruz, nó de marinheiro, ponto simples.
Mas ela rasgou; talvez por ser muito frágil, delicada.
Ao ver minha mãe chorando pensei no quanto eu queria que ela não sofresse por conta da morte. Mas ao olhar seu rosto ela não parecia ter o medo que se tem ao ver filmes de terror.
Eu pelo menos acho que nunca fiquei com feições assim ao ver qualquer tipo de filme.
A criança-anjo tinha o mesmo nome da minha irmã.
Minha mãe coloca agora minha irmã para dormir.
Faltam poucos dias para o dia das mães.
É muito difícil ser mãe, e essa dificuldade deve crescer proporcionalmente à quantidade de filhos.
Minha mãe tem muitos, muitos filhos.
Mas quase sempre a vejo sorrir.

Como pode?


(08 de maio de 2009)
À minha mãe.